Penso por que acho a Ana tão minha.
Talvez porque a conquistei, digamos assim, sozinha: não foi uma indicação que ouvi, ninguém nunca havia comentado sobre ela antes, nunca tinha lido seu nome. E daí a descobrir as leituras acadêmicas sobre a Ana, desvendando seus macetes, ou as leituras feministas, polêmicas, ou ainda as trágicas, com lupa e luva. Talvez porque a li muito nova, aos 15 ou 16, e esses elementos viram nossos pilares, como os amigos do colégio, coisas que guardamos como muito nossas.
Por outro lado, quando era pequena ouvia muito Tom Jobim e João Gilberto, e nem por isso sinto que são coisas tão minhas assim. Quero dizer, não tenho com eles essa mesma sensação que tenho com a Ana. Não a conheci, não falo muito sobre ela, como se a figura requeresse uma mesura, como se alguns pontos não solucionados não pudessem se solucionar, para não desmontar o brinquedo.
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olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
Em algum momento, na época da escola, pesquisando para uma aula de português, dei de cara com esse poema, o primeiro que li da Ana. Os versos assimétricos se afunilavam no brilho do computador: o poema não tinha rima nem título, parecia torto e desengonçado, tímido na tela. Curiosamente, na mesma semana saiu pela Nova Fronteira a edição “Novas Seletas” da poeta. Era um livro mole, de capa verde, com algumas notas que serviam de glossário. Explicava que “mora”, na década de 1970, era o mesmo que “entende”. Que “Lago, montanha” fazia referência ao livro do Chico Alvim.
Na mesma época, meu pai estava envolvido no projeto “Malucos de estimação”, do Tutty Vasquez. Marcou uma hora para fotografar o Armando, que para mim equivalia apenas a iniciais de alguém muito importante, o nome de quem passou a tomar conta da obra da Ana. Fui junto, praticamente fantasiada de assistente, e levei uma pastinha com contos (ainda não escrevia poemas) que o Armando leria depois, não na minha frente.
Quando contei que me sentia acuada por suas iniciais, ele riu, nunca tinha se visto daquele jeito. Ao nos levar até a porta, lembrou, um pouco aturdido, que havia gravado AFF num canto discreto da calçada, em frente à sua casa, quando o cimento ainda estava mole.
***
Ainda aos 16, parti para uma viagem de seis meses na Nova Zelândia. Era uma cidade pequeniníssima chamada Orewa, onde o local mais movimentado se concentrava num ponto de ônibus em frente ao supermercado New World. No inverno da ilha, morando em uma casa no alto de uma montanha, onde todos dormiam cedo demais, 26 poetas hoje e o livro da Ana me faziam companhia.
Aquilo não era poesia sisuda e séria, não vestia roupas de gala, não ficava na sacada declamando aos metros. Era um diário que se deixava abrir, um diário que ria um pouco da cara do leitor por contar só meias-verdades. Que os outros preenchessem a outra metade como bem entendessem. Ou que deixassem em suspenso todas as cifras que os glossários não dão conta. Ana já achava graça (meia-bruxa, meia-fera) dos pesquisadores que se desdobrariam na tentativa vã de encontrar a primeira edição do livrinho Correspondência completa, que propositalmente teve apenas a segunda edição.
A risada leve numa foto de óculos escuros sentada no carona, olhando para a câmera no banco de trás do carro, varando uma estrada.
Ana (me) diz que tem correspondentes em quatro capitais do mundo, que pensam nela intensamente, que, quando as cartas não chegam, planeja arrancar o calendário, na sessão de dor. Escrever, acho, carrega sempre uma função prática por detrás: nem que seja para fazer passar o tempo em um quarto de carpete marrom, onde às oito já não se ouve um pio, num fuso de 15 horas de diferença.
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Há quase dois anos, subo a ladeira da casa da Gávea todos os dias, de manhã. Cruzo o salão de losangos, as paredes de vidro, e abro a porta da sala onde trabalho. A sala fica a alguns passos do acervo da Ana. Bastaria atravessar a piscina e tomar a escada. Mas alguma coisa, misto de preguiça e pudor, me impede de ultrapassar essa linha imaginária. Como se eu tivesse que respeitar as publicações, as livrarias, as conversas com conhecidos. Pedir permissão para olhar os papéis seria como acender a luz fria e fuxicar a gaveta de roupas íntimas. O poema é murmurado no ouvido para que o segredo não seja ouvido letra por letra. Deve permanecer, em parte, na sombra.
* Alice Sant’Anna é coordenadora editorial da revista serrote
* Na imagem que ilustra a home do post: a poeta Ana Cristina Cesar